A Polícia Rodoviária Federal (PRF) selou o destino das operações que dificultaram o trânsito de eleitores em redutos lulistas no segundo turno da eleição de 2022 em uma reunião convocada às pressas para a sede da corporação, em Brasília, no dia 19 de outubro – pouco mais de duas semanas após o primeiro turno e a onze dias da disputa final entre Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro.
A discussão foi realizada na sessão extraordinária do Conselho Superior da PRF, e cercada pelo esforço da cúpula da corporação naquele momento para eliminar rastros de seu conteúdo.
O plano da “Operação Eleições 2022” foi repassado pelo diretor-geral bolsonarista Silvinei Vasques a todos os superintendentes da PRF na reunião do colegiado. Até mesmo a ata do encontro, que não consta na agenda de Vasques, foi manipulada para que não houvesse registro oficial da operação prevista para o segundo turno.
O documento, obtido pela equipe do blog via Lei de Acesso à Informação (LAI) já em dezembro, indica a participação de 44 dos 49 integrantes do colegiado, entre diretores e superintendentes da PRF nos estados, e informa apenas a discussão de temas triviais, como o treinamento físico institucional da PRF e o cálculo das escalas de serviço em situações excepcionais. Mas o principal objetivo do encontro — planejar as blitze que impuseram obstáculos aos eleitores de Lula — não consta do documento.
Como a ata não traz sequer a informação de que esse tema foi discutido na reunião de 19 de outubro, a equipe da coluna passou os últimos cinco meses procurando integrantes da PRF que tivessem estado em Brasília naquele dia para reconstituir o que se passou. Confirmamos a informação com cinco integrantes da PRF, dos quais três estiveram na reunião e confirmam que as operações foram o principal tema em debate naquele dia.
Mas a convocação de última hora não foi o único fato atípico no enredo da reunião do Conselho da PRF. Diferentemente do que costuma ocorrer na corporação, o encontro ocorreu de forma exclusivamente presencial. Para evitar gastos com o deslocamento dos 26 chefes regionais que trabalham fora da capital, muitas reuniões costumam ser virtuais. Por isso, todos os superintendentes precisaram viajar a Brasília.
Na entrada do auditório da sede nacional da PRF, os participantes precisaram entregar celulares e relógios a dois agentes do setor de inteligência da polícia para evitar que a discussão fosse gravada. Segundo a equipe da coluna apurou, essa era uma tática comum na gestão de Vasques. A ausência de participantes virtuais e o confisco dos aparelhos inviabilizou qualquer tentativa de registro do encontro.
Três dos cinco policiais rodoviários federais que ouvimos confirmaram que, durante a reunião, Vasques disse que havia chegado a hora da PRF tomar lado na disputa. O então diretor-geral pediu o engajamento dos presentes nas operações de 30 de outubro, especialmente no Nordeste. Enfatizou, ainda, que um segundo mandato de Bolsonaro traria benefícios a todos ali e à corporação, que teve suas prerrogativas expandidas no primeiro durante o mandato do então presidente.
Dois dos integrantes da PRF com quem conversamos, porém, dizem que havia justificativas concretas para o reforço das operações no Nordeste.
Um deles relatou que a permissão dada pelo ministro do Supremo Luís Roberto Barroso para que prefeituras e governos estaduais fornecessem transporte público grátis a eleitores levou a um aumento na previsão de ônibus nas estradas, o que justificaria a operação.
Outro argumento utilizado – à exemplo do que fez também o então ministro da Justiça Anderson Torres em uma visita à superintendência da PF na Bahia, uma semana depois do encontro em Brasília – foi o de que havia muitas denúncias de compras de votos na região.
A orientação do então diretor-geral para que a PRF preparasse bloqueios em regiões nas quais o candidato petista havia assegurado vantagem no primeiro turno causou perplexidade em alguns dos participantes. Segundo relato de um deles, “houve uma votação para chancelar as operações, e os contrários concordaram em não manifestar suas divergências publicamente”.
Ao final, nove participantes da reunião não assinaram a ata. Dos 44 participantes citados no documento, 37 registraram ter estado no encontro do dia 19. Os outros não haviam colocado suas assinaturas eletrônicas no documento salvo no sistema do governo até 12 de dezembro, quando a ata foi fornecida ao blog. Um dos participantes tidos como ausentes assinou o documento posteriormente, e outro se recusou a assiná-lo e ficou de fora do arquivo.
A primeira assinatura do documento só foi registrada 22 dias após a reunião, em 10 de novembro, 53 minutos após a equipe do blog solicitá-lo por meio da Lei de Acesso à Informação na plataforma Fala.BR do governo federal.
A segunda assinatura só viria seis dias depois, em 16 de novembro. Outros 23 participantes da reunião assinaram no mesmo dia 16, alguns com um intervalo de dois minutos entre si. A última só seria protocolada em 29 de novembro, mais de um mês após o encontro.
Já a íntegra do documento só seria disponibilizada pela PRF no dia 12 de dezembro – 42 dias depois de registrado nosso pedido de acesso à informação.
Nós procuramos o ex-diretor-geral Silvinei Vasques, mas não conseguimos contato. Questionada sobre inconsistências nas assinaturas da ata, a PRF informou que elas só poderão ser esclarecidas pelos próprios policiais. A corporação informou ainda que, no caso de férias, o servidor só poderia assinar o documento após o retorno – mas não explicou por que todas as assinaturas ocorreram só a partir de novembro.
A reunião chancelou as operações que ganhariam atenção nacional já durante a votação do segundo turno. As instruções para a sua realização foram detalhadas em uma ordem de serviço assinada no dia 26 de outubro por Vasques e seu diretor de operações, Djairlon Henrique, além do diretor de inteligência, Luís Carlos Reischak Júnior.
As informações que subsidiaram a ordem de serviço oficializada pela PRF partiram do próprio Ministério da Justiça. Como revelamos no último dia 19, a ex-diretora de inteligência da pasta Marília Alencar, que é próxima de Anderson Torres, confirmou à Polícia Federal ter elaborado um mapeamento das cidades em que Lula teve desempenho superior ao de Bolsonaro no primeiro turno.
Foram esses dados que nortearam a definição dos pontos que deveriam ser fiscalizados no planejamento da PRF. Esse detalhe também chamou a atenção de pessoas familiarizadas com o roteiro normal para esse tipo de operação.
Sob a condição de anonimato, agentes da PRF com experiência na área operacional afirmaram que, além de ser atípico antecipar locais de fiscalização em documentos públicos, a própria decisão de onde colocar bloqueios nas estradas seria uma atribuição das áreas operacionais das superintendências nos estados, e não da cúpula da instituição.
A ordem de serviço assinada por Vasques e a informação de que o esquema da operação eleições seria diferente dos outros anos por interferência de Bolsonaro circularam em Brasília na reta final da disputa e provocaram reclamações de partidos da coligação de Lula ao TSE e ao Supremo Tribunal Federal (STF), como o PT e o PSB.
Atendendo a um pedido do deputado petista Paulo Teixeira (SP), que viria a se tornar ministro de Lula, o presidente do TSE, Alexandre de Moraes, proibiu na noite de sábado, 29 de outubro, as duas corporações de realizar qualquer força-tarefa visando o transporte público de eleitores até a conclusão da votação.
Já na madrugada de domingo, Silvinei Vasques afrontou a decisão do TSE e manteve a ordem de serviço que determinava a realização das operações com efetivo reforçado em redutos lulistas. Às 2h43m da madrugada, o aliado de Bolsonaro assinou, sozinho, um ofício aos superintendentes informando que o planejamento estava mantido a despeito da ordem da corte.
No documento, o então diretor-geral sustentou que as operações programadas estavam em “estreito alinhamento com os objetivos previstos na decisão” do TSE. Como se sabe, a tese não parou de pé. No início da tarde de domingo, transcorridas cinco horas de votação com bloqueios da PRF em vários estados do país, Moraes intimou Vasques a interromper as operações imediatamente.
A intimação foi acatada pela polícia, mas o episódio aumentou a tensão em um segundo turno avaliado como imprevisível pelas duas campanhas presidenciais. Ao final, Lula venceria Bolsonaro com a margem mais estreita desde a redemocratização (2,1 milhões de votos, ou 1,8% dos votos válidos).
Na véspera da votação, Vasques usou seu perfil oficial no Instagram para se manifestar sobre as eleições. “Vote 22. Bolsonaro presidente”, escreveu o então diretor-geral da PRF sobre a imagem de uma bandeira do Brasil em referência ao número do partido de Bolsonaro, o PL.